Saturday, March 25, 2006

Leituras....




entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas




entre mim e o meu silêncio há gritos de cores estrondosas e magias recortadas dos sonhos que acontecem naturalmente. eu sou cama onde me deito, todas as noites diferente, eu sou o sorriso estridente dos pássaros no céu todo, eu sou o mar, o oceano velho a abrir a boca numa gruta que assusta as crianças e os homens que conhecem o mundo. eu sou o que não devia e rio, rio, rio, porque sou puro, porque sou um pouco da alegria, porque mil mãos e dez mil dedos me percorrem o corpo e me beijam. entre mim e o meu silêncio há uma confusão de equívocos que não entendo e não admito. sou arrogante, porque sou do país em que inventaram a arrogância. sou miserável. que sei eu? sou um viajante com destino traçado, como o fumo deste cigarro que desaparece indeciso e já esqueceu de onde veio. e rio, rio, rio, perdido e desalmado, de dentes sujos e quase doente, porque minha é esta esperança e esta vontade de nascer cada manhã, em cada rosto, em cada fósforo aceso, em cada estrela. rio, rio, rio, porque meu é o amor e o luto e a fome e todas as coisas que fazem esta vida que não entendo e persigo. eu sou um homem vivo a sentir cada pedra, eu sou um homem vivo a sentir cada montanha, eu sou um homem vivo a sentir cada grão de areia. desordenadamente, eu sou alguém que é eu sem o saber, entre mim e o meu silêncio há um desentendimento esculpido nas flores e nas nuvens, rio, rio, rio, eu sou a vida e o sol a iluminar-me.

José Luís Peixoto " A Criança em Ruínas" edições quasi

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